sábado, 5 de janeiro de 2013

Parto e Sagrado


Este texto foi produzido para uma palestra que eu ministrei em uma roda de conversa entre várias figuras interessantes da humanização do parto aqui em Brasília. O evento se chamava Rosa dos Ventres, e foi uma honra participar junto com pessoas queridas como Paloma Terra, Carla Daher, Dawn Marie Chaloux, Adèle Valarini... Foi um ótimo momento!

Fotografia de stock: Pregnant woman preparing for water birth mid…


Minha ideia é apresentar alguns pensamentos para que nós possamos construir juntos a relação entre parto e sacralidade. Primeiramente, a minha proposta neste texto não é falar de religião. Aliás, a minha proposta é não falar de religião. A palavra “sagrado” colocada no meu tema, fala sobre uma forma de experiência desvinculada de instituições e dogmas, e que diz respeito à experiência humana de maneira geral.
Sobre isso podemos falar, tendo em mente que cada um tem as suas experiências, e são sempre diferentes do outro. Quando eu falo de parto sagrado, eu não vou falar da minha experiência de parto, por que não tive, nem da sua, por que não conheço. Mas vou tentar, conversar sobre abrir uma possibilidade de vivenciar o parto como uma experiência com estas características, do sagrado enquanto estado mental, como um sentimento, uma experiência interna e individual.
O Sagrado é um estado que não pode ser explicado nem simbolizado, só pode ser experienciado. O mais próximo que podemos chegar de falar sobre o sagrado é citando sensações que são reflexo deste encontro, palavras como solenidade, arrepio, temor, assombro, sobrenatural. É uma experiência que diz para aquele que a vivencia sobre o divino, sobre ser e poder, sobre a revelação da verdade. Sendo assim pode ser uma experiência que surge tanto de um ritual da sua fé, quanto de coisas muito simples. Até mesmo do parto.
Em segundo lugar, antes de entrarmos no tema propriamente dito, eu gostaria de lembrar a importância do corpo para o tipo de experiência da qual estamos falando. O pensamento sobre o qual está a nossa forma de funcionar socialmente divide o homem entre mente e corpo. Para cada parte dessas existe um especialista: a mente é para psicólogos, filósofos, ciência, enquanto o corpo é para a medicina (e seus “derivados”). Assim, temos a impressão de que nós não precisamos nos preocupar com nada disso, podemos viver trabalhando e consumindo, certos de que tem alguém que vai resolver quando alguma dessas coisas apresentar um problema. Mas essa é uma ilusão, e quando tentamos viver com base nela geralmente perde-se a qualidade da experiência humana, principalmente espiritual.
Quando ousamos criticar e transpor a antítese mente e corpo, percebemos que o corpo não é o lugar da experiência, ele é a experiência. Ele é o sujeito da percepção. Quando meu braço é tocado, você me toca. Diferente de quando toca meu computador. O corpo é quem tem as perspectivas da realidade. A experiência corporal nos permite criar e recriar aquilo que pensamos, e a nossa racionalidade traz novas experiências para este corpo. Não há antítese nesta relação, mas complementariedade.
Assim, podemos pensar no parto sagrado como uma experiência, individual e única, proporcionada por aquilo que acontece no corpo feminino. Já que falamos no corpo feminino, uma forma possível de alcançar o sagrado nas suas manifestações é percebendo que o corpo da mulher reflete fenômenos macrocósmicos da Terra, da Mãe Terra.
Os cultos antigos às deusas estavam ligados de alguma forma aos elementos da Natureza, ao cultivo da Terra. Foi a mulher quem primeiro aprendeu a cultivar a terra, seu ciclo reprodutivo é o ciclo de vida e morte, o ciclo lunar e reflete o funcionamento do cosmo. Mircea Eliade no seu livro “O Sagrado e o Profano” reconhece que a experiência sagrada feminina: “é sempre uma experiência religiosa profunda que está na base de todos os ritos e mistérios”. Ele diz ainda que: “O mistério do parto, quer dizer, a descoberta feita pela mulher de que ela é criadora no plano da vida, constitui uma experiência religiosa intraduzível em termos da experiência masculina”.
O momento de um parto, quando mais uma pessoa está para se materializar e dar a sua primeira tomada de ar, é um momento de profundos significados e símbolos. É uma repetição da história evolutiva humana, no momento em que os primeiros seres terrestres surgiram. É o momento em que a mulher está mais ligada à Terra, por que está depondo o fruto da sua fertilidade, está vivendo no seu corpo a vida e a morte. Está ligada ao cosmos, por que é o portal de entrada para uma nova vida, para as infinitas possibilidades que é um bebê. A sacralidade deste momento do parto é por nós intuída, então sentimos medo, temor diante daquilo que é maior que nós.
Adelise Noal Monteiro, no seu texto “Gestação e parto como símbolos”, coloca o seguinte dilema: todo o aparato médico requisitado para o momento do parto é um ritual – cheio de protocolos que não estão de acordo com as evidências científicas. O mistério é deixado sob a responsabilidade dos sacerdotes, a equipe de saúde. Isso tem várias conseqüências, dentre as quais destaco, para não sair do assunto, a tomada do corpo feminino como um objeto do ato médico e a perda da autonomia da mulher sobre seu próprio processo existencial naquele momento, já que combinamos aqui que o corpo é o sujeito da experiência.
Por outro lado, a autora lembra que retirar o parto dessa aura de mistério para vê-lo e vivenciá-lo como mais um evento fisiológico que não pede nenhuma atenção, seria arrancar deste momento a história ritualística que dedicamos ao parto e perder a sua potencialidade como experiência sagrada. É este mistério que pode nos levar à sacralidade.
Assim, o papel dos “humanizadores” do parto é proporcionar os ambientes internos e externos propícios para a experiência do sagrado. É criar, junto com todos os envolvidos, outra significação, outros rituais. Também para que a mulher entre em contato com seu corpo (ou consigo mesma), neste momento, de maneira ritualística, como se entrasse em um templo, em uma igreja reconhecendo as potencialidades espirituais desta experiência.
No seu artigo “O Parto: Encontro com o Sagrado”, Adriana Tanese Nogueira discute a sacralidade deste momento com base no depoimento de uma mulher que no último mês de gestação mudou a história do seu parto. Gostaria de fechar essa reflexão com um trecho da sua fala:
No exato momento do nascimento senti uma vibração, uma energia poderosa que preenchia tudo. Senti como se meu corpo e meu ego se dissolvessem e tudo fosse um. Entrei em comunhão com o universo. É impossível não estar absolutamente presente no momento do parto. As sensações, a percepção, o corpo e a mente ficam totalmente focados, centrados naquele instante, que por menor que seja, torna-se infinito.”

Bibliografia
Csordas, T. 2008. Corpo/Significado/Cura. Porto Alegre: Editora UFRGS.

Eliade, M. 1992. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes.

Monteiro, A.N. 2011. Gestação e Parto como símbolos. Acessado em 30/11/2011. http://www.amigasdopartogestantes.com/2011/01/gestacao-e-parto-como-simbolos.html

Nogueira, A. T. 2006. O Parto: Encontro com o Sagrado. Texto Contexto Enferm. 15(1). 122-130.

Otto, R. 2007. O Sagrado: os aspectos irracionais da noção do divino e sua relação com o racional. Petrópolis: Vozes.



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